terça-feira, 28 de agosto de 2012



Milton Santos
Globalização e reorganização histórica
As ideias, em várias áreas do conhecimento humano, do geógrafo e grande pensador Milton Santos, um dos pouquíssimos brasileiros ganhadores de um Prêmio Nobel até o momento, suscita uma reflexão sobre a história atual do Brasil - e do mundo! - para um melhor entendimento de suas efetivas mudanças sociais e éticas

Por Adriana Venâncio



Trazer Milton Santos (1926-2001) como referência para discutir a respeito da globalização é perceber os impactos que esse fenômeno vem trazendo para as relações econômicas e sociais da atualidade. Para o autor, essa “faca de dois gumes” pode impulsionar uma reorganização histórica a partir de novos parâmetros de desenvolvimento e convivência para a humanidade.
Embora tenha sido o único Prêmio Nobel Brasileiro da Geografia até o momento, conquistado em 1994, Milton Santos teve ideias que perpassaram por muitas áreas do conhecimento, ensinando as pessoas a compreenderem o seu próprio tempo, percebendo-se como parte integrante dele, dentro de uma certa “ordem mundial”.
Ainda como estudante, foi o responsável pela fundação da União Brasileira dos Estudantes Secundários, escreveu no jornal O Momento, além de ser o diretor da Imprensa Oficial e, ao mesmo tempo, professor da Universidade Federal da Bahia. Foi professor de várias outras universidades, entre elas a Universidade de São Paulo (USP), também deu aula e atuou como pesquisador em universidades do exterior. Ficou exilado na França durante o Regime Militar, após ter sido preso, e, retornou ao Brasil em 1978. Sempre teve uma militância política nas discussões democráticas do país e foi, talvez, um dos mais sensíveis críticos dos efeitos da globalização no Brasil e no mundo.
Mazelas de um mundo globalizado
Todos os dias chegam-nos notícias dos mais diversos meios e fontes de comunicação de que em algum local do mundo pessoas morrem de fome; ou que os índices salariais caem cada vez mais; ou que as grandes empresas mais poluidoras do mundo não estão preocupadas efetivamente em mudar suas políticas em relação ao meio ambiente; ou que as taxas de pobreza continuam aumentando em muitos lugares do planeta e que a violência cresce, mesmo nos ambientes de maior crescimento econômico.
Esses problemas são de fato notados por muitos de nós, porque, de uma maneira ou de outra, somos afetados diretamente por eles. Mas embora nos afetem, percebê-los e constatar que eles existem não nos habilita para atuar no sentido de combatê-los para que possam ser superados realmente.
Esse sentimento de inação, embora nos deixe aparentemente atados por não sabermos ao certo o que fazer para mudar tais realidades, pode estar ligado a nossa falta de percepção política e social sobre o que esses problemas podem causar em nossa vida. Milton Santos observa que o estágio atual da globalização está produzindo mais e mais desigualdades sociais, e, ao contrário do que se esperava no passado, continuam crescendo o desemprego, a pobreza, a fome, a insegurança do cotidiano, em um mundo onde se ampliam as fraturas sociais. Sedados diante de tais realidades, o que poderia justificar esse tipo de imobilidade social à qual nos submetemos constantemente em nosso dia a dia?

Deusa grega da justiça divina
Entre a fantasia e o real
Na Antiguidade Clássica, era muito conhecido entre os gregos o drama vivido por duas Deusas que se odiavam brutalmente, ao ponto de nunca poderem ser vistas uma pela outra. Eram elas a deusa da justiça e a deusa da mentira. No Olimpo, um dos desafios de Zeus e dos outros deuses e deusas era o de arranjar para que nunca uma delas se encontrasse com a outra. E dessa forma, era comum o fato de que onde se encontrava a deusa da justiça, jamais a deusa da mentira poderia ser vista. E a paz reinava em todos os campos e lugares.
No entanto, é sabido por todos que grandes festas eram realizadas pelos deuses para celebrar seus feitos entre os homens. E foi em uma dessas festas consagradas por Baco, com os melhores vinhos, que talvez uma das maiores tragédias da história do Olimpo sucedera: após intermináveis dias de comemoração, a embriaguez era sem dúvida a única que reinava. Nesse ambiente, já farta de tanto vinho, a deusa da justiça resolve ir até os jardins daquele templo para tomar o ar fresco que lhe traria mais ânimo para prosseguir nos festejos. Porém, o mesmo se deu com a deusa da mentira, também já indisposta de tanta beberagem. E foi assim, em uma sequência de fatos que o inevitável aconteceu: em um encontro súbito cada uma delas desembainhou imediatamente sua espada, em uma luta desenfreada e sangrenta de golpes que se seguiam sem trégua.

A globalização está produzindo mais e mais desigualdades sociais...
Durante horas que pareciam infinitas, elas duelaram como jamais se tinha visto em todo o Olimpo, adentrando inclusive os primeiros raios que nasciam pela manhã. Dessa forma, depois de longos e exaustivos esforços investidos de uma contra a outra, a deusa da justiça consegue empreender um golpe fatal, cortando em definitivo a cabeça da deusa da mentira. Mas o que não era previsto também aconteceu e, em uma ironia do destino, a deusa da justiça recebeu simultaneamente o mesmo golpe daquela que atingira, perdendo também a própria cabeça.
“A chamada globalização como fábula é, para Milton Santos, a prática hábil do mercado em vender ‘mentiras’ fantasiadas de ‘justiça social’”
O que se seguiu talvez justifique as maiores tragédias e injustiças que vêm acontecendo ao longo de todos os tempos nos mais diversos pontos da Terra: a deusa da justiça saiu tateando ao seu redor em busca de sua cabeça e assim que encontrou algo semelhante, restituiu o achado ao seu local de origem. Da mesma forma procedeu a deusa da mentira. Nesse momento, já extasiados com tanta brutalidade, os deuses do Olimpo assistiram à cena que mudaria completamente o curso da humanidade: foi o momento em que ambas as deusas trocaram para sempre as suas cabeças, de modo que desde então nunca mais se soube ao certo o que poderia representar, de fato, a justiça ou a mentira.
Talvez esse mito originário da Antiguidade Clássica possa nos ajudar a figurar, ainda que através do caminho da narrativa lírica, um pouco da dualidade que passou a existir em relação ao conceito de justiça embutido nos valores humanos de nossa sociedade atual, tão entranhada em uma ideologia globalizada. Nesse movimento, a chamada globalização como fábula é, para Milton Santos, a prática hábil do mercado em vender “mentiras” fantasiadas de “justiça social”.

e, ao contrário do que se esperava, continuam crescendo o desemprego, a pobreza, a fome e a insegurança
“A grande tarefa pedagógica do momento histórico atual é a de capacitar os cidadãos para criticarem o consumismo e reaprenderem as tarefas da cidadania”
Para que as pessoas possam compreender a dupla face desse tipo específico de “justiça” é preciso que a Educação, o Estado e os demais meios de informação assumam também o papel de denunciar a imensa distância que separa um e outro. Em outras palavras, é preciso que cada cidadão tenha consciência de que o consumismo passou a existir como uma lei permanente da vida das pessoas e deixou de ser o meio, para ser o fim dos problemas de todas as necessidades humanas. É fundamental que cada cidadão possa entender que a prática do “sobre consumo” gera um sentimento ilusório de realização pessoal (tão bem instilados pela força de mercado) e que isso garante a continuidade do sistema lucrativo das grandes empresas internacionais. Para Milton Santos, a produção e informação globalizadas permitem a emergência de um lucro em escala mundial, buscado pelas firmas globais que constituem o verdadeiro motor da atividade econômica.
Educar para quê?
A grande tarefa pedagógica do momento histórico pelo qual estamos passando é a de capacitar os cidadãos para criticarem o consumismo e reaprenderem as tarefas da cidadania, objetivos que não podem ser alcançados separadamente. Infelizmente, o próprio Brasil sofreu com uma conivência do Estado, da Educação e dos meios de informação no sentido de colaborar com essa vertente consumista. É dessa forma que a ideologia do consumo foi ficando cada vez mais impregnada na população em geral.
Ao discutir sobre a “doença” do comprar desenfreado, Milton Santos nota que a primeira reação da população pobre, como qualquer outra, é a do consumo e que isso é normal, mas que depois se descobre que não basta consumir, ou que para consumir de forma permanente, progressiva e digna é necessário ser cidadão.
Dessa forma, um grande dilema a ser desvendado em nossa atualidade é a confusão entre quem é o cidadão e quem é o consumidor, pois a educação, a moradia, a saúde, o lazer aparecem como conquistas pessoais e não como direitos sociais. Essa doença cívica vai tomando um lugar sempre maior em cada indivíduo, o lugar do cidadão vai ficando menor e até a vontade de se tornar um cidadão por inteiro se reduz. Talvez por isso, esses que são, na realidade, tidos como bens públicos, passem a não sê-lo, transitando do lugar de “dever social” do Estado para o de bens de mercado.

Atualmente a educação, a moradia, a saúde, o lazer aparecem como conquistas pessoais e não como direitos sociais...
A distribuição de renda piorou na maior parte do mundo em 2011. Os países que ocupam as 10 últimas posições no Índice de Desenvolvimento Humano são todos da África Sub-sahariana
Os intelectuais e suas ideias
Quando se discute o papel do intelectual no Brasil, nota-se no discurso de Milton Santos uma grande coerência entre o que sugere como sendo o dever a ser cumprido por todo intelectual brasileiro e o seu próprio exemplo de grande pensador e militante das causas humanas, em diferentes contextos econômicos, sociais, políticos e culturais do Brasil.
Ao tratar dos elementos que considera particularmente importantes nessa atuação, ressalta que em um mundo em que as ideias são um respaldo necessário aos processos de reconstrução democrática, os intelectuais apresentam um papel fundamental. No entanto, destaca que, na atualidade, esses mesmos intelectuais têm destinado seus esforços mais no sentido de favorecer uma militância de discursos ambíguos e momentâneos do que para um trabalho permanente e gradual de conscientização coletiva.
“A prática do consumo gera um sentimento ilusório de realização pessoal e isso garante a continuidade do sistema lucrativo das grandes empresas”
Os intelectuais, segundo Milton Santos, deveriam se esmerar em fazer eco às reivindicações mais profundas das populações carentes, no sentido de intervirem nos projetos políticos e sociais do país. Dessa forma, caberia a eles oferecer à sociedade, por meio dos mais diversos segmentos, organizados ou não (associações, sindicatos, igrejas, partidos), uma profunda reflexão social de sua própria realidade contraditória, alertando-os sobre as possibilidades de um fazer político que esteja condizente com as demandas e interesses sociais da maioria da população.
Talvez por essa imensa preocupação em relação às intervenções que os intelectuais deveriam carregar como princípio de sua práxis, nosso pesquisador brasileiro define que, para ele, intelectual é o indivíduo que tem um compromisso único com a verdade e que está muito mais preocupado com o prestígio do que com o poder.

1. Milton Santos, um dos grandes nomes da renovação da geografia no Brasil ocorrida na década de 1970 / 2. Vilém Flusser, filósofo tcheco naturalizado brasileiro / 3. Hilton Japiassu, filósofo
Se entender o mundo de hoje é um problema para os intelectuais brasileiros, o nosso prêmio Nobel da Geografia Brasileira observou que nas teses, de um modo geral, de praticamente todos os centros e faculdades, o mundo é quase ignorado. E estudar o mundo é, segundo ele, trabalhar com o “como” ensinar à população sobre o que é o mundo, quais são as relações que comandam a vida nacional, como é que os fenômenos sociais e econômicos se realizam, por meio de um discurso crítico e não de uma mera análise.
Nesse sentido, observa Hilton Japiassu, que a Ciência está ainda em débito com o objeto de estudo “homem”. Nessas premissas, destaca a dificuldade cada vez maior em se praticar a pesquisa onde o homem é ou deveria ser tomado como o elemento fundamental, em um lugar em que a Ciência está voltada ao setor econômico e à produção e aumento de bens de consumo.
É nesse ambiente que as ciências humanas acabaram por contribuir com o desaparecimento de numerosas civilizações equilibradas. Nessa herança, cabe agora, e mais do que nunca, aos intelectuais a responsabilidade por terem compreendido demasiadamente tarde que o homem deveria ter sido estudado, antes de tudo, como ser humano, e não, prioritariamente, como um cliente possível.
Talvez uma das maiores contribuições da filosofia seja a de ajudar a resgatar a liberdade humana. Segundo Flusser, a filosofia é necessária porque, mesmo em um mundo programado por grandes blocos econômicos, ela traz o exercício do pensar sobre o significado que cada homem pode dar à sua própria vida e, ao mesmo tempo, consegue apontar para um caminho de liberdade.
Nesse papel filosófico, não apenas do intelectual, mas também da própria universidade, cabe a construção de uma visão abrangente e dinâmica do que é o mundo, do que é o país, do que é o lugar, e o papel de denúncia, isto é, de proclamação clara do que é o mundo, o país, e o lugar, dizendo tudo isso em voz alta. Essa crítica é o próprio trabalho do intelectual e poderia ser o trabalho do professor e do pesquisador.
Bibliografia
- FLUSSER, Vilém. Filosofia Da Caixa Preta: Ensaios para uma Futura Filosofia da Fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
- JAPIASSU, Hilton. Nascimento e Morte das Ciências Humanas. Rio de Janeiro (RJ): Editora Francisco Alves, 1978.
- SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. São Paulo: Nobel, 1987.
- SANTOS, Milton. O País Distorcido: O Brasil, a Globalização e a Cidadania. Publifolha: São Paulo, 2002.
-SANTOS, Milton. Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2007.
- SANTOS, Milton. Por uma outra Globalização: do Pensamento Único à Consciência Universal. Rio de Janeiro: Record. 19ª edição, 2010.
- SILVA, Maria Auxiliadora da & JÚNIOR, Rubens de Toledo. Encontro com o Pensamento de Milton Santos: a Interdisciplinaridade na Sua Obra. Salvador: Universidade Federal da Bahia. Mestrado em Geografia, 2006.
ADRIANA GOMES VENÂNCIO é Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Brasília (UnB), Mestra em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Historiadora pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Há mais de 15 anos vem atuando como educadora, pesquisadora e consultora de projetos na área de História e Educação Patrimonial. É coautora da Coleção Conhecer e Crescer de História, pela Escala Educacional, autora de artigos para revistas e livros didáticos e leitora crítica de Coleções de História para editoras do segmento educacional


FONTE: Portal Ciência e Vida

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